quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Indústria da Beleza Parte II - O consumo da Imagem

Reza a lenda que há muito tempo na Grécia antiga, um belo rapaz deixou-se consumir diante da margem de um rio, apaixonado pela imagem refletida nas suas águas, sem perceber que se apaixonara por si mesmo. O filme Diabo veste Prada (The Devil Wears Prada, EUA, 2006) poderia ser uma releitura Hollywoodiana do Mito do Narciso, é a tradução das questões pós-modernas. Hedonismo, narcisismo, busca por uma carreira pessoal bem sucedida e poder como o fim absoluto. Valores e relações afetivas são descartáveis como meros bens de consumo. Miranda Priestly, no seu templo de poder – a revista Runway Magazine – dita as ordens com tal habilidade e convicção, que demonstra saber manipular pessoas como se fossem fantoches, pois sabe que sua moeda de troca é alta: status e poder. Para Marcel Maus nessa relação de troca de Miranda se daria a dádiva, pois para ele basta haver uma prestação unilateral, um favorecimento e uma aceitação para haver a dádiva e essa prestação unilateral para gerar valor; isto é, uma ética impõe-se mesmo aqueles que não retribuem ainda que isso ocorra em cada caso específico.

Marcel Mauss, um antropólogo francês que viveu na primeira metade do século XX, produziu um artigo chamado “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de ‘eu’” (1938), onde expõe a história do processo de progressiva individualização por que passou nossa civilização. Nas sociedades ditas “primitivas”, o máximo de individualização era representado pela atribuição dada a alguns de seus membros, de um papel ritual herdado por nascimento. A idéia de “pessoa” surgiu entre os gregos, inicialmente com o sentido associado às máscaras utilizadas nas encenações rituais e teatrais. Assim, “pessoa” era a interpretação de um personagem, cujos atos não eram de autoria de seu intérprete. Per-sonare significa “soar através de” (o orifício da máscara). Somente na Roma Antiga, com o desenvolvimento de um sistema de trocas internas e externas entre grupos e pessoas, a idéia de persona passou, das máscaras que os atores dos dramas rituais usavam, para designar os próprios atores. Surgia a noção jurídica de “pessoa” que, entretanto, não se aplicava aos escravos, estrangeiros e mulheres. Seguindo neste percurso, por influência do cristianismo em Roma, a responsabilidade moral passou a ser um atributo da pessoa. Mas, até a modernidade (a teoria cartesiana é emblemática desta transformação), a determinação do que era cada “pessoa” dependia de fatores externos (sociais). São as mudanças sociais, políticas e ideológicas dos séculos XVII e XVIII que vão estabelecer o ideal de autonomia dos indivíduos. A partir deste momento, é fortalecida a crença na racionalidade científica como critério de verdade e na liberdade das consciências individuais para decidir seus destinos. Entre as conseqüências da modernidade, pode-se observar que a ciência e as tecnologias progrediram rapidamente, mas as novas formas de relações sociais que surgiram passaram a exigir novas estratégias para conciliar as liberdades individuais com a organização da sociedade. Na contemporaneidade, vive-se num mundo imagético, onde o culto ao corpo é a nova ordem. Maus prossegue afirmando que todo ato educativo é técnica corporal, e que as técnicas corporais são “sistemas de montagens simbólicas”. Nas palavras de Geertz: “o homem é um animal simbolizante”. Roupas de grife são – símbolos - o sonho de consumo e a explicitação do sucesso pessoal dos indivíduos. Por esta aparência se luta, pois esta passou a ser seu passaporte social e/ou a carteira de identidade das pessoas. E porque não dizer o caminho de sua felicidade. O descontrole das posições entre homem e dinheiro, onde o último se torna senhor do primeiro, corrobora a queixa de que o dinheiro é o deus da nossa época. Porquanto a ele são atribuídos padrões de segurança, harmonia e realização individual. A cultura do consumismo é uma realidade do século XXI, onde a posse é sinônimo de status, e numa alusão à singularidade do individuo estes têm necessidade de refletir-se no outro, quer seja uma personagem da novela, um cantor famoso ou o participante de um reality show.

É na busca desse homem por um sentido, na sua fuga da solidão, onde ele vê no outro um paradigma de socialização, que o dinheiro tem seu vulto comercial endêmico. A posse sempre estabeleceu fronteiras entre os indivíduos, sempre equiparou uns em detrimento de outros. A moral, a ética, a responsabilidade social, o bem-comum, adquiriu aspectos relativos ante a necessidade de auto-afirmação. É verdadeiramente a cultura do individualismo.

E Miranda abusa deste novo “valor”, despertando a ambição nas pessoas, com as quais em alguns momentos se identifica, pois se vê projetada nelas, nesta busca “inescrupulosa”. Ela trata as pessoas como marionetes, traça suas estratégias de sucesso e prestígio descartando funcionários competentes, porém sabe que estes estão vinculados a ela não por afeto, mas por interesses narcísicos. Miranda torna-se um exemplo para aqueles que se acham superiores, demostrando isso todo o tempo. Miranda representa bem a noção de pessoa Maus, pois sua persona é construída socialmente através de toda uma pedagogia técnica e simbólica que institui o sentido do corpo e de sua individualidade para o sujeito, é uma das formas fundamentais do pensamento e da ação dos indivíduos, sendo, portanto, uma representação coletiva, uma categoria do entendimento; e, como toda categoria do entendimento, ela não é inata. E de acordo com Marshal Sahlins Miranda age de acordo com a estrutura da conjuntura da sua realidade.
A ação simbólica é um composto duplo, constituído por um passado inescapável porque os conceitos através dos quais a experiência é organizada e comunicada procedem do esquema cultural preexistente. E um passado irredutível por causa da singularidade do mundo em cada ação: a diferença heraclitiana entre a experiência única do rio e seu nome. A diferença reside na irredutibilidade dos atores específicos e de seus conceitos empíricos que nunca são precisamente iguais a outros atores e outras situações - nunca é possível entrar no rio duas vezes. As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações, realmente se tornam autoras de seus conceitos; porque, se sempre há um passado no presente, um sistema a priori de interpretação, há também "uma vida que se deseja a si mesma" (como diria Nietzsche). (Sahlins, 1990, p. 189)

A intenção é atentar para a existência de uma certa "estrutura da conjuntura" (Sahlins, 1990), que implica pensar, ao mesmo tempo, nas persistências e em suas atualizações. Segundo Louis Dumont, antropólogo francês, esse individualismo expresso por Miranda está intrinsecamente relacionado com duas definições básicas: a do indivíduo–no-mundo e a do indivíduo-fora-do-mundo. Sua defesa do individualismo se fundamenta na concepção de um homem que superou o holismo e obteve um caráter empírico “que fala, pensa e crê, ou seja, a amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades” (Dumont, 1985: p.37). Seja nas entranhas do cristianismo, na ambição do homem renascentista ou na auto-afirmação do homem moderno, o individualismo traz em si uma posição particular diante do sistema em que o mesmo está inserido. Dumont (1985) faz uma volta ao passado e busca nos primórdios cristãos o que viria a ser o individualismo moderno. Porém, Dumont diz:

“...algo do individualismo moderno está presente nos primeiros cristão e no mundo que os cerca, mas não se trata do individualismo que nos é familiar” (1985, p. 36).

O discurso do consumo (dentro do capitalismo) gira em torno da auto-responsabilidade, no último momento. Serei indivíduo auto-responsável se usar da minha liberdade para melhor gerenciar minha vida, com o fim primeiro de acumular o tanto de dinheiro possível quanto possa garantir a minha singularidade. É comum na cultura moderna os homens se distinguirem pela quantidade de dinheiro que os mesmos possuem. Se o que caracteriza o individualismo é a liberdade, a distinção e a auto-responsabilidade, ou seja, a satisfação dos desejos pessoais, o individualismo na cultura moderna não passa de um conceito. Ou, no máximo, de um conceito para poucos. Para aqueles que buscam se aproximar do estado de natureza dos homens, para os que buscam ser livres de todos e de tudo, tanto interior quanto -exteriormente, poderiam ser vistos como os “renunciantes” do sistema; os “indivíduos-no-mundo” -não sociais, mas naturais-; os “seres morais”, portadores dos valores supremos da natureza. Porém, no mundo moderno, estes individualistas são tidos como loucos. Vemos que assim como Miranda as vezes essa liberdade de consumir segue juntamente com a perca de algo. Ela era extremamente bem sucedida no trabalho, porém sua vida afetiva sempre estava em frangalho. A dádiva sempre se cumpre, vemos isso na estória de Miranda, ela sempre recebia o pedido de divórcio dos seus maridos por causa do seu consumo pelo poder e status.

2 comentários:

Hugo Quintela disse...

Eu adorei essa postagem, primeiro porque fui eu quem fiz, segundo porque estou exercendo meu individualismo pós-moderno carregado de narcisismo e hedonismo!

Luciana disse...

hugo, ninguem te merece! hauhauhauahauhauh
seu narcisista personalista!